Escrevo este artigo no domingo de carnaval. A festa, cuja origem remonta à Antiguidade, foi ressignificada no mundo cristão medieval por consistir num rito de inversão (onde há uma tácita licença para a troca entre os opostos da sociedade), antecipando a renúncia e a meditação que devem ser exercitadas na Quaresma – os quarenta dias entre a Quarta-feira de Cinzas e a Páscoa. Baseada no calendário lunar, a Páscoa é sempre celebrada no domingo após a primeira lua cheia depois do equinócio de outono no Hemisfério Sul. Por isso, as datas do Carnaval variam ano a ano, ocorrendo entre 4 de fevereiro e 9 de março.
O Carnaval no Brasil tem suas origens no período colonial. Uma das primeiras formas de celebração foi o entrudo, uma tradição portuguesa que se popularizou entre os escravizados na colônia. Nessa brincadeira, os participantes percorriam as ruas arremessando líquidos e sujeira uns nos outros, utilizando lama, urina e outras substâncias. Apesar de sua proibição em 1841, essa prática continuou sendo realizada até o século XX.
Com o ar do tempo, outras formas de folia ganharam espaço, como os ranchos, cordões, desfiles de carros decorados e festas em salões. As escolas de samba surgiram e se consolidaram como parte essencial do evento, assim como manifestações culturais regionais, a exemplo do frevo, do maracatu e dos afoxés. Ritmos musicais como o samba e as tradicionais marchinhas tornaram-se símbolos dessa grande celebração popular no Brasil.
Em especial, a “geleia geral” do Carnaval carioca é formada, entre outros ingredientes, de patrimônio e procissão: popular, celebrado também por povos tradicionais, que evocam suas ancestralidades e memórias, é ainda filho de uma tradição processional que marcou nossa história.
Vejamos essa descrição:
“As ruas enfeitadas de arcos cheios de dísticos e insígnias. Lá vinham os carros e as danças e as máscaras […]. Os turcos e os cristãos militarmente vestidos, os vistosos uniformes e turbantes com broches de pedra do tamanho de uma moeda, as espadas e adagas de prata reluzente acompanhando o ritmo da dança e da música. Os carros dos músicos, os seus instrumentos e vozes.”¹
O que, num primeiro momento, poderia parecer a descrição das alegorias históricas de uma escola de samba – como o consagrado enredo ‘Xica da Silva’, que rendeu à Salgueiro o título no primeiro desfile na Av. Pres. Vargas (1963), é na verdade retratado no romance de Autran Dourado¹ como uma revivescência da famosa Procissão do Triunfo Eucarístico, ocorrida na Vila Rica durante o apogeu do período aurífero, em 1733. O episódio, dos mais marcantes para demarcar a opulência das cidades mineiras setecentistas, consistiu na comemoração pela transferência do Santíssimo Sacramento (isto é, a hóstia eucarística) da igreja do Rosário para a igreja do Pilar de Ouro Preto. É também um exemplo entre as tantas procissões protagonizadas pelas então poderosas irmandades da sociedade colonial, proprietárias de muitas das igrejas tombadas no Brasil.
Mesmo no início do século XX, quando o carnaval carioca se seculariza de vez com o surgimento das escolas de samba – criadas como uma forma de resistência às patrulhas policiais, desfilando inicialmente no perímetro da Pequena África, na hoje demolida Praça 11 de Junho –a tradição processional se faria presente. A primeira disputa ocorreu em 1929, nos arredores da igreja de Sant’Ana – uma das irmandades mais antigas e populares do Rio de Janeiro, que também deu origem ao nome do Campo de Sant’Ana.
Portanto, se você pretende curtir o Carnaval nos blocos de rua espalhados pela cidade, não danifique ou suje uma igreja ou monumento histórico. Lembre-se que essa folia é descendente das tradições e festas dos nossos anteados, consistindo num verdadeiro patrimônio material e imaterial de todo o povo brasileiro.
1 DOURADO, Autran. Os sinos da agonia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. 7ª Ed. p. 52.